Luciano Spinelli
lucianospinelli@gmail.com
Este artigo aborda a pichação como signo comunicativo integrado à cidade polifônica. A sua significação é levada em conta como linguagem secreta dominada por jovens adultos organizados em torno de um círculo tribal pós-moderno. Para com a população em geral e o Estado em particular, a pichação pode também integrar o fenômeno de poluição visual inerente às grandes cidades. É em referência à essas problemáticas que observamos a pichação como um código à margem, sem regra.
Palavras-chave: Pichação, Comunicação Urbana, Cidade Polifônica.
This article approaches the pichação as a communication sign integrated to the polyphonic city. Its signification is taken as a private language dominated by young adults organized around a post-modern tribal circle. For the population and the State, the pichação can also integrate the phenomenon of visual pollution of the cities. In reference to that context we can observe the pichação as a code without a rule.
Keywords: Pichação, Urban Communication Polyphonic City.
Este artigo aborda um processo de comunicação urbana através da análise de uma manifestação visual subjetiva por parte de jovens adultos que marcam as cidades mais populosas sob a insígnia da pichação. A capacidade de invadir e compor com um espaço público polifônico participado do imaginário do habitante metropolitano faz da pichação um signo a integrar arbitrariamente a linguagem urbana. É também nessa arbitrariedade que repousa a justificativa para a interdição dessa prática sobre a acusação de dano ao patrimônio publico e privado. Deve-se levar em conta, porém, que outros signos também não requisitados surgem freneticamente em frente ao passante da rua globalizada. Dentre eles, o mais visível é a propaganda.
O objetivo de observar o poder invasivo, contido na pichação como um signo urbano, é de a relacionar a outras manifestações visuais entorno do dialogo criado com o habitante citadino. Em um comparativo com a publicidade, por exemplo, percebe-se que, enquanto uma goza de legitimidade autorizada, mediante pagamento, a outra é institucionalmente ilegítima, e sua realização está sujeita à pena e/ou ao pagamento de multa. As razões para essa diferenciação podem ser encontradas nos artigo da legislação brasileira ou então nos meandros do sistema capitalista internacional. O certo é que ambas levam a publico, à rua, manifestações simbólicas de significado difuso, compreensíveis segundo certas instâncias analíticas. Para tanto, a publicidade pode passar de uma imagem alusiva a uma marca até a uma informação subliminar ou um merchandising mais explicito. A pichação, por sua vez, pode passar de um rabisco ilegível e monocromático, a uma assinatura, até culminar em um código secreto articulado por jovens e adultos que nele se reconhecem.
Publicidade e pichação podem ser entendidas como "frases" que estimulam os sentidos com surgimentos e cortes bruscos, inferidos pelos ritmos da cidade, em uma leitura constante da aparência urbana. Elas compõem uma estética comunicativa que invade a mente quando passa pelos olhos, podendo ser ou não decodificada como mensagem. A constante presença desses signos satura a paisagem citadina, de forma que cada informação vem entrelaçada a uma outra, constituindo uma certa "legenda" do urbano, que é sonorizada pelo movimento dos carros, regidos no ritmo do semáforo. O significado confuso das frases que se aglomeram em frente, ao passar do indivíduo, pode ser interpretado a partir do "modelo comunicativo da publicidade".
O modelo comunicativo da publicidade é o resultado complexo de muitas linguagens parciais fundidas numa síntese suja, por assim dizer. Com efeito, o emissor seleciona algumas linguagens entre outras, enquanto o destinatário traduz o todo com uma sensibilidade que varia com base naquelas características, próprias de cada camada de público, que se diferencia de possuir ou não os novos alfabetos visuais (CANEVACCI, 2001:155).
O transeunte é alvo de estímulos cromáticos, gráficos e verbais das placas de trânsito, dos nomes de estabelecimentos comerciais, das paradas de ônibus, e, junto deles, dos grafites e das pichações, que também se apropriam de estratégias próprias das técnicas comunicativas da publicidade. Nesses alfabetos visuais são usadas cores quentes, é feita a escolha de um público alvo, busca-se visibilidade para comunicar e interagir com os moradores da cidade. Hoje, a publicidade reitera, em algumas ocasiões, a linguagem das ruas, quando, por exemplo, usa a letra "árabe-gótica" da pichação para fazer propaganda do tênis ou do celular.
Vamos ver agora um conceito, mesmo que superficial, da pichação para posteriormente integrá-la ao seu ambiente de interação simbólica no qual ela pode constituir um elemento de violência face ao cidadão, assim como outras manifestações visuais que são englobadas sob a insígnia da poluição visual. No caso da pichação, a sensação de violência pode ser derivada sob diversos ângulos que englobam desde a relação entre as tribos de pichadores, na qual uma hierarquia exige respeito, até o surgimento dessas assinaturas fusionadas aos estímulos da publicidade e da cidade que de forma repentina se exibem frente ao deambular do metropolitano.
A pichação pode ser caracterizada como letras ou assinaturas de caráter monocromático, feito com spray ou rolo de pintura. O piche popularizou um estilo próprio, difundido sobretudo a partir da cidade de São Paulo, de onde se estendeu por todo o país. A letra da pichação é composta por traços retos que formam diversas arestas em uma forma homogeneizadora. A fonte tipográfica ficou conhecida como “Iron Maiden”, por lembrar as letras usadas nas capas dos discos dessa banda de heavy metal. Massimo Canevacci usa outra expressão para definir a escrita dos pichadores. Ele fala de um "árabe-gótico":
Essas letras têm o jogo – ou o arabesco, como muito adequadamente foi definido – dos rabiscos próprios da verdadeira escrita árabe, com sua exigência quase exagerada de entrelaçamentos que constroem cifras, bordados, heras; e também a seriedade do alfabeto gótico, feito de signos convexos e côncavos, de ângulos agudos, de improvisadas acelerações, com subidas e descidas dos signos. Talvez seja devido a esta matriz obscura e misturada – simultaneamente árabe e gótica, quase o máximo da incompreensibilidade – que raramente se compreenda o sentido desses grafites (CANEVACCI, 1993:183).
O estilo agrega o grupo em torno de uma linguagem comum, manifestada na vida cotidiana, no emprego da palavra, nas técnicas corporais e mesmo na comunicação que passa pelas paredes. Maffesoli fala em "style genre", estilo tipo, ao referir-se a essa identificação:
A linguagem serve de senha, de signo de reconhecimento, e permite fora dos limites do seu território (bairro, escola, relações amigáveis) de, se agregar a grupos que compartilham o mesmo "estilo tipo" (MAFFESOLI, 1993:31).
Mesmo com a identificação de grupo através de signos comuns: como pintar, o que pintar e onde pintar são frutos de decisões individuais, subjetivas, e influenciadas por fatores os mais diversos. O “crew”, também conhecido como "bonde" ou "coletivo", é o fator de coesão. A assinatura do nome do crew ao lado da firma individual identifica o assinante a um grupo, a um estilo e a uma região da cidade. Os crews, firmados pelo pertencimento a um bairro, respeitam os mesmos moldes organizacionais constatados por Glória Diógenes em seu estudo sobre as gangues urbanas.
O grupo que picha tem no bairro, na zona em que mora, um referencial de territorialidade que acompanha a inscrição na parede. A formação do crew é então precedida de uma proximidade geográfica entre os integrantes. Essa relação com o bairro acompanha a pichação como um dado complementar e manifesta uma afirmação de pertencimento a determinada região da cidade. Essa menção é feita em geral na forma de uma abreviatura como por exemplo Z/N para a zona norte. Sobre as marcas da pichação, Arthur Lara afirma que:
Para identificar uma pichação coloca-se ao lado dela uma indicação pessoal ou do grupo que a realizou. Uma pichação é, portanto, rodeada de comentários que indicam sua procedência, as pessoas que a realizaram, se foram convidadas ou participam do grupo. No caso de pichadores que reaparecem ou de marcas retomadas depois de terem sido abandonadas, é comum usar-se a expressão "estamos de volta. (LARA, 1996:51).
O epicentro das atividades de pichação é o centro da cidade. Para ele rumam, dos mais diversos bairros, indivíduos que têm por praxe inscrever seus deslocamentos pela cidade com suas marcas, adesivos, tags, grafites, piches, e, nesses movimentos, tornam visível suas regiões de apropriação. Fazem, com isso, uma ressignificação do modo de habitar a cidade e marcam, no percorrer urbano, um itinerário em que se reconhecem. Essa forma de viver a cidade é característica de um sujeito errante.
É próprio do errante: exprimir uma forte personalidade e só tomar sentido no seio de um grupo fortemente soldado. (...) Na verdade, tudo isso é um modo de escapar da solidão gregária própria da organização racional e mecânica da vida social moderna. (MAFFESOLI, 1997:70).
Quem faz a pintura noturna da cidade, vive como em um grupo de rapina, cuja motivação é a adrenalina, a aventura, diferente da racionalização manifesta por uma parte sedentária da população que acumula casa, carro e dinheiro em um processo rotineiro de enraizamento. O deslocamento errante do pichador é mais livre em uma cidade escura, vazia e desprotegida. Vaguear por toda a cidade é inerente a seu ethos, a recorrência da visibilidade para um anônimo conhecido.
O bairro deixa então de ser o local de atuação, ao contrário das gangues urbanas onde a defesa de um território é prerrogativa básica. Nos bondes, o bairro só serve como identificação geográfica do grupo, visto que marcam toda a cidade, invadindo áreas de outros grupos em uma disputa hierárquica. A forma de luta difere da violência física das gangues urbanas, pois, nos grupos do piche e do grafite, ela se reduz a uma violência simbólica e provocativa. A referência ao bairro continua, mas, dessa vez, marcada ao lado da assinatura.
Na pichação, a hierarquia é medida pelo número de aparições, na cidade, de determinada marca, é sempre importante a recorrência, e é necessário ousadia para ter o que os pichadores chamam de “IBOPE”. É dado valor, sobretudo, a piches feitos em locais altos e inacessíveis, tais como pontes, topo de edifícios e locais de grande vigilância policial.
A atuação de grafiteiros e pichadores colabora, em geral, com uma marginalização do bairro em que foi feita. Com exceção das poucas ocasiões em que ganham uma conotação artística valorativa, as intervenções visuais não repercutem em bairros habitados por detentores de capital econômico, em geral mais intensamente policiados, com ruas pouco movimentadas e constantemente pintados. Já as grandes avenidas da cidade, povoadas por estabelecimentos comerciais que adormecem ao cair da noite, são mais propensas à pichação quando no dia seguinte servem de corredor para a ligação casa-trabalho, garantindo a grande visibilidade do feito.Cabe ressaltar que a pichação, assim como o grafite, não é reconhecida como prática legal, a menos que o local usado seja cedido por seu proprietário. A polícia tem como praxe enquadrar quem picha e quem grafita (diferença por vezes muito subjetiva) no já referido artigo 163 do código penal brasileiro sobre o “dano ao patrimônio público”. A ilegalidade força o pichador a uma relação diferenciada com o poder público, o que afirma o caráter subversivos da prática e estabelece um impasse entre indivíduo e Estado. Há uma relação de poder e dominação que decorre da apropriação do patrimônio público, trazendo conseqüências relevantes à vida do sujeito que marca o urbano.
O caráter ilegal da prática marginaliza a pichação e o pichador sob diversos quesitos relativos à inserção social. O termo marginalidade pode se referir a questões econômicas, étnicas, raciais, e a outras formas de distinção social. Quando relativo ao pichador, ele pode ser entendido como:O termo marginalidade abrange os transviados, quer se trate de tipos patológicos, ou talentosos e não-conformistas. No caso de um artista, um criminoso, um profeta ou um revolucionário, a marginalidade implica uma falta de participação na corrente ocupacional, religiosa ou política principal. O transviado pode ser um desistente passivo ou um crítico ativo da sociedade, ou poderá emergir de uma sub-cultura ela mesma marginal (PERLMAN, 1977:128).
A marginalidade no pichador é perceptível sob diversos aspectos. No âmbito jurídico, o pichador é marginal quando a prática da pintura urbana pode levá-lo à delegacia, assim como a responder processos. Não é de praxe prender quem picha e grafita a cidade, sendo que as penas aplicadas são compostas por, em geral, multa e trabalhos comunitários. No aspecto físico, o corpo do pichador é marginalizado quando ostenta sinais da atividade, como roupas e mãos sujas de tinta. O pichador pode também ser alvo de violência física, quando na mira de tiros disparados por moradores indignados com "esses marginais", ou da violência policial, se preso durante a ação na madrugada da cidade. No sentido moral e cultural, a sociedade não observa com bons olhos o jovem que picha, é visto como delinqüente, e também é alvo de fofoca na vizinhança e objeto de preocupação dos pais com a desvalorização dos "bons costumes". Finalmente, a geografia urbana põem à margem muitos pichadores que rumam para o centro no intuito de deixar suas marcas.
Quando morador da periferia, o jovem que pinta na cidade é duplamente estigmatizado pela sociedade elitista, que exige sua cidade livre de “marginais” que produzem “poluição visual”. O viver na periferia dificulta, dentre outros, o acesso do jovem ao mercado de trabalho, aos meios de difusão cultural, à infra-estrutura oferecida pelo Estado que se concentra na região central.
A predominância do caráter noturno na atividade de pichação colabora com a marginalização da prática, ou melhor, a marginalização da pichação obriga à ação noturna. Vem ao caso, que o uso da cidade durante a noite é reservado aos boêmios, aos ladrões, aos moradores de rua, e a outras "espécies" não tão gratas de habitantes da cidade. O pichador, na noite, no entender da sociedade, é mais um invasor furtivo, cujo malefício consiste em marcar a propriedade alheia e deve ser combatido pela Lei.
Por vezes, a relação com a própria família passa a ser conturbada se a identidade do pichador vem à tona. Muitos levam uma vida dupla, ajudados por luvas cirúrgicas que garantem as mãos limpas de tinta no dia seguinte de trabalho. Ser visto sem ser descoberto faz parte do comportamento por motivos óbvios, como a discriminação da sociedade e a repressão policial. O sociólogo Robert Park retratou nestes termos essa situação ambígua:
Os processos de segregação estabelecem distâncias morais que fazem da cidade um mosaico de pequenos mundos que se tocam, mas não se interpenetram. Isso possibilita ao indivíduo passar rápida e facilmente de um meio moral a outro, e encoraja a experiência fascinante, mas perigosa de viver ao mesmo tempo em vários mundos diferentes e contíguos, mas de outra forma amplamente separados. Tudo isso tende a dar à vida citadina um caráter superficial e adventício; tende a complicar as relações sociais e a produzir tipos individuais novos e divergentes. Introduz, ao mesmo tempo, um elemento de acaso a aventura que se acrescenta ao estímulo da vida citadina e lhe confere uma atração especial para nervos jovens e frescos ( PARK, 1987:62)
O pichador passa a conviver, criar e reinventar identidades; dúbias, é certo, mas integradas em um processo de representação do eu na vida cotidiana, definido por E. Goffman como análogo à performance teatral. É através dessa duplicidade que o pichador passa do convívio tribal à vida social em um exercício de dissimulação e integração. As relações sociais do pichador passam então a ser marcadas pelo que M. Maffesoli chama de socialidade, em que o vinculo repousa mais no afeto, nas trocas informais, subjetivas e emotivas do que em pactos legais, institucionais e normativos.
Levando em conta a premissa de que existe uma poluição visual que recai sobre o habitante metropolitano, a pichação pode ser entendida como um fator agressivo a estimular, de forma constante, os sentidos do passante. Estímulos não necessariamente menos nefastos podem também ser gerados pela publicidade ou pela sinalética urbana instalada pelo Estado de forma a gerir, guiar e informar o morador da cidade. Essa profusão de signos sobrecarregam o indivíduo de informações desnecessárias podendo levar a um sentimento de estresse, impotência, confusão e até de medo.
A poluição visual é proporcional à gestão deficitária do espaço publico por parte do Estado, da iniciativa privada e do habitante metropolitano. São estimados como fatores de poluição visual os seguintes elementos: o acúmulo de lixo nas ruas, a diversidade arquitetural dos imóveis, os excesso de mobiliário urbano, os anúncios publicitários, o graffiti e a pichação. No que nos tange, a pichação pode ser entendida como poluição visual quando permeia as paredes da cidade de forma onipresente sem respeito a um plano arquitetural e histórico. Acredita-se, porém, que o pichador não tem como objetivo poluir visualmente a cidade quando marca os muros, e, sim, afirmar sua presença em uma disputa privada por visibilidade de uma tribo urbana.
O que para alguns pode ser considerado poluição visual, para outros é apenas um reflexo lógico das novas formas de habitar um ecossistema urbano pós-moderno, profundamente marcado pela economia capitalista de mercado e seus devidos elementos iconográficos e vídeo-lúdicos. O grafiteiro e o pichador fazem apenas reproduzir os mesmos modelos de comunicação nos quais foram educados. Os painéis de escritos publicitários, que reluzem marcas e produtos, quando criados pela tribo urbana, que pinta a cidade, passam a refletir nomes e marcas pessoais.
É de se pensar a pintura na parede da cidade como algo sedimentar, que envolve com camadas históricas de tinta um suporte estético e expressivo. Quando escamas, uma após outra, as finas coberturas coloridas das paredes podem desvendar informações sobre a memória da cidade e a vida social que passou por alí. Participam assim da estética de uma cidade polifônica, de uma cidade que é narrada, segundo M. Canevacci por diversas vozes e formas interpretativas, cada qual diferente uma da outra, mas que convergem na focalização de um paradigma inquieto: “a abstração epistemológica da forma-cidade e as emoções do perder-se no urbano ”.
Entre essas diversas vozes da paisagem urbana estão a do grafite e a da pichação, que articulam signos com técnicas semelhantes às da mass media, cuja estética se torna possível de ser compreendida através da estética das mescadorias. Ainda que o intuito não seja o de tornar-se vendável, o "fazer-se ver" do grafite e da pichação emprega as mesmas técnicas da publicidade ao comunicar com a cidade. M. Canevacci afirma que essas.
Mercadorias estetizadas comunicam significados definidos e múltiplos com sua linguagem ventríloqua (...) falam de forma loquaz com um estilo nelas incorporado que é decodificado no momento do consumo de modo muito polissêmico e ativo, pelo consumidor glocal (CANEVACCI, 2001:22).
A questão da violência nesse processo de comunicação urbana se deixa observar por diversos ângulos. Por um lado, pode ser levado em conta o caráter violento da própria atividade de pichação, que inclui rixas entre crews ou bondes rivais assim como o conflito iminente com a polícia, e diz respeito unicamente aos expoentes dessa prática. Por outro lado, a violência pode ser aferida contra a população pelo caráter misterioso, fantasmagórico e onipresente da pichação que compõe a estética urbana de metrópoles como São Paulo.
A pichação pode ser causa de um sentimento de medo e de insegurança devido a vários fatores: à sua forma, como um código lingüístico secreto acessível somente para iniciados; à sua presença, totalitária e constantemente impregnada ao mobiliário urbano; à sua reprodução, contínua e prolongada de modo misterioso durante a madrugada. A pichação é também uma amostra da falta de vigilância policial, e assim, prova de insegurança, pois, o pichador que escala a marquise de um imóvel para assinar seu nome de guerra, pode muito bem invadir o dito apartamento para praticar um furto. Porém, o pichador não é, em geral, um ladrão, e seu tipo de comportamento não é comum entre os membros da tribo que pratica essa intervenção visual urbana. Mas, é certo que o simples fato de indicar a possibilidade de invasão ao patrimônio privado já inocula um medo constante à população que cada vez mais está sujeita aos estímulos paranóides da vídeo vigilância e da violência totalitária.
No que tange a relação do pichador com a população, o conflito é iminente e a violência presente. Nesse quesito deve-se levar em conta o pichador em ação, pois, no cotidiano, o pichador passa desapercebido ao não ostentar sinais de sua identidade “secreta”. Quando exerce a prática, que o identifica como tal, ele pode ser alvo de manifestações violentas por parte da população descontente com os resultados de sua ação. Quanto à essas manifestações, elas se dão em forma de gritos, de xingamentos, de denuncias à policia, e até mesmo de tiros. Esse conflito iminente ajuda a tornar a pichação uma ação organizada em moldes quase militares para fazer desse ato furtivo algo cada vez mais desapercebido durante sua realização noturna, porém visível à luz do cotidiano citadino. Aliás, um paradoxo que, na prática, não é assim tão antagônico.
A marginalização da pichação e a violência iminente ao ato, tanto da parte invasiva do ato pichador, quanto da parte repressiva que concerne à população e à polícia, instiga a uma guinada em nome da redução de danos. Com a popularização do movimento hip-hop tenta-se uma aproximação do jovem pichador para perto da ética do hip-hop que encontra no grafite a sua expressão artística visual. Estado e sociedade instigam então a uma prática do grafite, até certo ponto tolerada, através de oficinas ministradas por órgãos associados ao poder público. A aproximação do jovem que pratica o piche para perto do grafite faz parte do que os integrantes do movimento hip-hop chamam de violência direcionada:
A violência direcionada é um modo de reedição da palavra, e até mesmo da visão do hip-hop, de uma recomposição da dinâmica da violência, em contraposição ao uso da força física (DIÓGENES, 1998:134).
Com o grafite são ensinadas noções de artes plásticas e muralismo que favorecem a inserção no mercado de trabalho, assim como vinculam ao grafite mensagens da “ideologia” hip-hop, conceituada por Elaine Andrade nestes termos:
O hip-hop, ideologicamente, é como sua música. Numa base simples de princípios que incluem a paz, o respeito ao próximo e a auto-valorização, encaixam-se as influências mais variadas. Se o DJ usa retalhos de músicas ‘consumidas’ pela indústria cultural para criar outras músicas (como os favelados fazem suas casas com restos de ‘lixo’), os ideólogos do hip-hop apropriam-se de cacos de ideologias e compõem seu próprio rol particular de crenças. Assim, idéias do comunismo convivem harmonicamente com elementos do cristianismo e das religiões afro-brasileiras (ANDRADE, 1999:106).
A relação entre grafite e piche foi aproximada pelo movimento hip-hop que inclui o grafite como uma de suas formas de expressão. O hip-hop populariza a pintura de siglas e nomes, com ênfase na tridimensionalidade e nas cores, o que capta pichadores e transforma o limite entre piche e grafite. A palavra ou sigla pichada é agora grafitada, rompendo com uma diferenciação entre piche e grafite para quem pratica a intervenção visual na cidade. Da mesma forma, esse processo talvez facilite a aceitação desse produto por parte da população em geral.
No hip-hop, o grafite torna-se um veículo de comunicação dos seus integrantes. A mudança não se dá apenas na estética da letra grafitada com o uso de cores, brilho, sombra, tridimensionalidade, mas, principalmente, na intenção de se fazer determinada intervenção visual. Deve-se passar uma mensagem, sem perder de vista a pretensão de marcar, ser recorrente e estetizar, salientando-a através das cores e do inusitado. O grafite, no movimento hip-hop, passa a verbalizar o ethos do grupo, “a idéia preconizada pelo movimento é a de uma guerra entre ricos e pobres e tem o rap, o grafite e o break como armas de contestação política” (como salienta Glória Diógenes, 1998:132).
Não pretendemos aqui estabelecer e caracterizar uma diferença estética ou valorativa entre grafite e pichação, pois o intuito de produzir uma intervenção de cunho artístico ou degradativo diz respeito antes ao ator da prática, do que a técnica visual empregada. No entanto, é certo que a sociedade em geral, e o Estado em particular, vêem com melhores olhos as obras produzidas por grafiteiros do que as realizadas por pichadores, dado que valorizam, antes de tudo, a caráter estético do símbolo exposto na parede. Sendo assim, a forma popular de perceber as mais variadas maneiras de intervir na estética da cidade é, em geral, baseada em uma dicotomia simplista: grafite é tudo que é belo e reluzente; piche é o monocromático que suja.
Em algumas cidades, das quais se têm notícia, como, por exemplo. na cidade do México, essa diferença não é explicitada devido ao caráter de ilegalidade que paira sobre as duas técnicas de intervenção visual. O grafite, assim como o tag, que estaria próxima ao piche brasileiro, são frutos da atuação de pessoas que se intitulam “grafiteiros”. No México,
A comunidade de jovens que se dedicam a fazer o graffiti utilizam essa palavra para referir-se a todas as produções realizadas com aerosol ou outros utencílios e materiais com o intuito de divulgar seus nomes de grafiteiros (CRUZ, 2004:198).
Não está em voga o caráter monocromático ou colorido da obra feita na parede, e, sim, a intencionalidade de marcar a cidade com sua assinatura, que pode ou não ser acompanhada de algum desenho e cores. Porém, no Brasil, essa distinção entre grafite e pichação é constante, visto que as redes de relações de grafiteiros e pichadores nem sempre se cruzam, existindo mesmo uma certa competição entre os dois grupos, que consiste no atropelo da obra alheia. Frente à sociedade, o grafite é então marcado por um processo de legitimidade artística, enquanto que o piche é marginalizado, sujeito à insígnia da depredação do patrimônio público e do privado.
Finalmente, deve-se destacar o caráter mutante do grafite e da pichação, como obras nômades a serem repetidas nos itinerários percorridos, sempre com sutis e inevitáveis diferenças nas quais o inacabado dá lugar ao diálogo com o entorno citadino. Através de sua fusão no suporte urbano, a pichação e o grafite são integrados aos ritmos da cidade, e participam dos signos a comunicar com o indivíduo apressado pós-moderno. Nesse intuito, apresentam uma linguagem ventríloqua por meio de um ideário plástico que enfatiza estilo, tamanho e mesmo cores para, através da estética das mercadorias, integrar a "cidade polifônica".
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The video documentary by Luciano Spinelli about Brazilian pichação "DANO 163":
http://www.dailymotion.com/video/x1ucbz_graffiti-documentaire-dano-163_creation
This article first appeared in the Revista Logos, n. 26, 1º semestre/2007.
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